Entendendo “Das vantagens de ser bobo” de Clarice Lispector.

Gaspar José
6 min readMar 23, 2021

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Cena do filme “Os idiotas” de Lars Von Trier (1998).

Entre o bobo e o esperto, acho que me identifico mais como o “bobo”. Clarice Lispector deixa bem claro que o bobo não é burro. Ela reafirma e repete, em meio a tantos elogios, que ele não é burro. Ela tece e descreve com tanto carinho que realmente a única ofensa que fica, é na palavra “bobo”. Mas bobo, e não burro.

O bobo que, segundo ela, vive uma vida ilustre mas que padece na mão dos espertos. Espertos esses que vivem uma vida em alerta, que por medo de outro esperto chegar, não admitem que ninguém seja mais esperto do que ele. O bobo não liga em ter perto de si outro bobo mais ou menos bobo do que ele. O esperto está sempre usando outro esperto ou até um bobo como escada para se achar mais esperto do que ele realmente é. E essa esperteza não tem fim, é uma escada rolante pro infinito igual aquelas que aparecem em desenhos animados. Só que rolando pra baixo enquanto o esperto tenta subir. Já o bobo não tem escada pra subir. Ele prefere girar, circular, ir e vir. Só subir é um caminho muito fechado para o bobo. O bobo gosta de escolher, porque gosta de gostar das coisas. O esperto só quer gostar de se sentir mais esperto. Vem de um vazio que tem que ser preenchido, e não de uma esfera de possibilidades que é a vida do bobo. O bobo não quer o mundo, ele só quer fazer parte dele.

O esperto sabe quem é esperto, eles se enxergam, se mapeiam e se destroem. O bobo não, ele vive. E por viver, entende que a vida não é só ganhar, e nem só perder. A vida é simplesmente o que vem.

Se o esperto não chegar onde ele quer chegar, ele nunca desiste, ele insiste porque é só isso que ele tem. E sem isso ele não é nada. O bobo entende que para chegar em algum lugar basta ir, e uma hora ele chega lá.

Ser bobo é esperar o bom das pessoas porque o bobo acredita. O esperto desconfia. O bobo acredita onde não deveria acreditar e o esperto desconfia onde não deveria desconfiar. O esperto sofre mais do que o bobo. Mas acredito que para o esperto, o sofrimento seja muito mais edificante do que para o bobo. Enquanto para o bobo, o sofrimento é muito mais passageiro do que para o esperto que, apegado à sua meta de ser esperto, sofre para construir sua vida. Construção feita na base de dor e frustração. O bobo sofre, mas sabe que o sofrimento tem a mesma importância que os outros sentimentos, e que tudo tem seu valor. O valor do esperto é só ganhar. E ganhar não necessariamente vai satisfazer o esperto, porque ele vai querer sempre mais. O bobo fica contente porque ganhou e não porque talvez vá ganhar de novo, e de novo e de novo. Ele sabe que o sentimento de vitória passa, assim como o sentimento de dor passa. Tudo vai e volta, sobe e desce. Para o esperto não, o caminho é um só.

Ser esperto é estar certo no seu tempo e na sua hora. É cumprir um dever. É sobreviver. Agora, para o bobo não importa estar certo sempre, pois para ele, saber o que é o certo é o suficiente. É mais sobre viver do que sobreviver.

Então, não me importo com essa denominação “bobo”. Ser bobo parece ser muito mais esperto do que ser esperto. E para quem já tentou ser esperto e nunca se sentiu em casa, ser bobo é um lar muito mais convidativo. Com cheiro de comida e barulho de TV. Enquanto ser esperto te deixa apenas com você mesmo como sua própria casa, sua construção, seu eu. E se esse eu do esperto não for o que ele quer, a sua casa, que é o seu eu, só se destrói. Ser bobo, para mim, vem muito do sentimento de fazer parte, de estar em comunidade e entender que o mundo não é só você. É encarar a vida de um jeito mais leve em que você é importante apenas por existir, e não ter que ficar se forçando a existir o tempo todo para se sentir importante.

Não julgo os espertos nem quero que eles venham pro lado dos bobos. Afinal, os espertos, assim como tudo, também tem seu valor. Eu, que já fui muito esperto, sei que são os espertos que movem o mundo com suas ambições de crescimento eterno. O esperto é filho do dinheiro, da razão e do palpável. Ele é a máquina que queima para girar a engrenagem do mundo. Enquanto o bobo é filho do amor, da fé e do metafísico. Ele é fruto do entendimento de que não há entendimento para tudo. E que a razão é apenas mais uma prática do complexo escopo do que é ser e viver.

Confira o texto ‘Das vantagens de ser bobo” de Clarice Lispector:

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando“. Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem à ideia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona.

Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar e, portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.

Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: “Até tu, Brutus?“. Bobo não reclama. Em compensação, como exclama! Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás, não se importa que saibam que eles sabem.

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas! Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

– Clarice Lispector, do livro “A descoberta do mundo”. [crônicas]. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.

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